segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Maior Flor do Mundo

Eis as palavras do escritor José Saramago publicadas em livro pela Editorial Caminho no ano de 2001:

«As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas. Quem me dera saber escrever histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena. Além de ser preciso saber escolher as palavras, faz falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito explicada, uma paciência muito grande – e a mim falta-me pelo menos a paciência, do que peço desculpa.
Se eu tivesse aquelas qualidades todas, poderia contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei, mas que, assim como a vão ler, é apenas o resumo de uma história, que em duas palavras se diz... Que me seja desculpada a vaidade se eu até cheguei a pensar que a minha história seria a mais linda de todas as que escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas... Há quanto tempo isso vai!
Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia. (Agora vão começar a aparecer algumas palavras difíceis, mas quem não souber deve ir ver no dicionário ou perguntar ao professor.)
Não se temam, porém, aqueles que fora das cidades não concebem histórias nem sequer infantis: o meu herói menino tem as suas aventuras aprazadas fora da sossegada terra onde vivem os pais, supondo que uma irmã, talvez um resto de avós e uma parentela misturada de que não há notícia.
Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu...
Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurava sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte, efeito literário de ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder hoje aconchegar a frase. Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: «Vou ou não vou?» E foi.
O rio fazia um desvio grande, afastava-ser e de rio ele estava já um pouco farto, tanto que o via desde que nascera. Resolveu cortar a direito pelos campos, entre extensos olivais, ladeando misteriosas sebes cobertas de campainhas brancas, e outras vezes metendo por bosques de altos freixos onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule sangrado de fresco como uma veia branca e verde.
Oh, que feliz ia o menino! Andou, andou foram rareando as árvores, e agora havia uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inóspita colina redonda como uma tigela voltada.
Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? Nem a sorte, nem a morte, nem as tábuas do destino... Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longo estava!...

Não importa.

Desce o menino a montanha,

Atravessa o mundo todo,

Chega ao grande rio Nilo,

No côncavo das mãos recolhe

Quanto de água lá cabia,

Volta o mundo a atravessar,

Pela vertente se arrasta,

Três gotas que lá chegaram,

Bebeu-as a flor sedenta.

Vinte vezes cá e lá,

Cem mil viagens à Lua,

O sangue nos pés descalços,

Mas a flor aprumada

Já dava cheiro no ar,

E como se fosse um carvalho

Deitava sombras no chão.

O menino adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nestes casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à busca do menino perdido. E não o acharam.

Correram tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali.

Foram todos de carreira, subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele, resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada, com todas as cores do arco-íris.

Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre.

Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos.

E essa é a moral da história.

E este era o conto que eu queria contar. Tenho muita pena de não saber escrever histórias para crianças. Mas ao menos ficaram sabendo como a história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para crianças...

Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?...»

©José Saramago e Editorial Caminho, SA, Lisboa - 2001

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